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“Eu assino embaixo, doutor, por minha rapaziada. Somos crioulos do morro, mas ninguém roubou nada! Isso é preconceito de cor!”

Lendo o blog do Juiz Alexandre Moraes da Rosa me deparei com um post sobre reincidência e lembrei que, há mais de cinco anos, fiz meu Trabalho de Conclusão de Curso justamente sobre o assunto, com o seguinte título: A reincidência como reafirmação da culpabilidade de autor: inconstitucionalidade de sua aplicação em um Estado Democrático de Direito. Veja-se que, desde lá – e muito antes disso, se tivermos como marco inicial a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988 – o assunto é amplamente discutido por grandes nomes, mas nem por isso podemos vê-lo com a mesma frequência nos tribunais ou em pauta no Congresso Nacional, infelizmente.

Aproveitando que o assunto foi trazido até mim depois de tantos anos, relembro aqui um resumo do resumo do resumo do que abordei no meu trabalho, à época.

Ainda que, oficialmente, vivamos em um Estado Democrático de Direito desde a promulgação da Constituição de 1988, muitos institutos existentes que lhe antecedem, e que com ela não se coadunam, permanecem em pleno vigor, como ocorre com a reincidência criminal. Reincidência criminal, para os que ignoram seu conceito jurídico, é o cometimento de um novo crime apos o trânsito em julgado de sentença penal condenatória por crime anterior. Ou seja, cometer um crime, ser condenado e, após não mais caber recurso (em sentido estrito) dessa decisão, cometer novo delito.

É instituto previsto no nosso Código Penal, datado da década de 40, mas que há muito não de harmoniza com o ordenamento jurídico pátrio, devendo, por isso, ser abolido. A própria Constituição permite que, por meio de ação incidental de inconstitucionalidade, o magistrado, ao analisar um caso em concreto, afaste determinados institutos do direito pátrio, sejam anteriores ou posteriores à promulgação da Constituição, caso  os entenda em desacordo com essa. Por isso, ainda que a inconstitucionalidade da reincidência ainda não tenha sido declarada por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn), meio mais adequado e usualmente utilizado em casos similares, há a possibilidade de ela ser afastada pelos juízes monocráticos em suas decisões do dia-a-dia, o que pouco (ou quase nada) se observa na prática.

As origens da reincidência encontra-se nas escolas positivistas e, principalmente, na chamada culpabilidade de autor. Ou seja, herança da teria da periculosidade defendida pelos positivistas. O positivismo penal serviu como convalidação da nova burguesia ascendente, que após tomar o poder das mãos do monarca, precisava legitimar sua permanência ali e o continuísmo das relações sociais. Tal Escola serviu como “ciência” confirmadora do superior desenvolvimento das classes no poder, em detrimento das classes marginalizadas, que seriam seres ainda em desenvolvimento mental, ou melhor, em um estágio evolutivo inferior.

No poder, a burguesia ocultava uma metafísica que impedia qualquer tipo de mudança social; os direitos individuais desapareciam em favor de um único ente, o “organismo social”, sendo que na cabeça desse organismo social encontrava-se a classe dominante, os “melhores” e mais “evoluídos”.

A reincidência como índice de periculosidade, servindo como parâmetro para quantificar o grau de perigo de um criminoso para a sociedade, foi um conceito trazido por Ferri (autor Positivista) e estava intimamente correlacionado à personalidade do agente. A periculosidade não teria origem em uma determinada ação, mas na própria personalidade do homem. Por isso, a biotipologia, a endocrinologia e a psicanálise foram amplamente utilizadas para dar os parâmetros teóricos para o estudo da periculosidade criminal.

Diversos autores criticaram a teoria da periculosidade, apontando como um de seus principais equívocos o modo como foram estudados os criminosos, já que as pesquisas eram eivadas de erros metodológicos. Se invertêssemos os resultados da pesquisa de Lombroso, por exemplo, chegar-se-ia facilmente a conclusão de que o cárcere é, na verdade, o local de recolhimento daqueles que são disfuncionais ao sistema produtivo. A periculosidade foi confundida com disfuncionalidade para a sociedade de fábrica. A pena vai buscar erradicar a periculosidade através do tratamento do delinqüente, que é justamente a adequação ao sistema fabril: treinamento e disciplina.

Mesmo depois de todas as críticas lançadas sobre a Escola Positiva, esta permaneceu quase que incólume, já que servia plenamente aos interesses das classes no poder. A Nova Defesa Social, por exemplo, não passou de um positivismo remodelado. A pena deixa de ser vista como uma retribuição para ter então um caráter preventivo. O centro de pesquisa continua a ser a personalidade do criminoso. Só que crime deixa de ser uma patologia para ser encarado como uma convenção social, algo criado pelo Estado (o crime é aquilo que o legislador assim define). O delinqüente deixa de ser uma anormal para passar a ser visto como um ser anti-social. Os que desrespeitam a lei devem receber uma medida de condicionamento para serem reeducados.

Embora se auto-afirmasse como uma corrente humanitária, a Nova Defesa Social permitia todo tipo de ingerência sobre o criminoso, sobre sua psique. O fim da pena é a conversão do condenado pelo tratamento carcerário intensivo, o que permitia que esta perdurasse pelo tempo necessário a que o criminoso se convertesse à visão de mundo e ao modo de vida que lhe impõem. Flagrante seu total descompasso com um Estado de Direito Democrático.

Somente a Criminologia Crítica veio quebrar muitos dos mitos assentados na ideologia da defesa social. A grande virada epistemológica ocorre na década de setenta do século XX, com a chamada teoria do labeling approach ou teoria da reação social. Mostrou que há inúmeras pessoas em classes privilegiadas que também praticam crimes, muito mais sérios, às vezes, que os crimes comuns entre as classes baixas.

O desvio não foi mais visto apenas como uma atitude de uma minoria anormal, mas como um ato típico e normal da maioria da população. No entanto, como o Estado jamais conseguirá punir todos os crimes praticados, somente alguns desses desvios serão criminalizados. O labeling approach trouxe para seu estudo, assim, a questão da seletividade. Que o crime só vai existir a partir do momento em que há uma reação social a ele.

A Criminologia passou a estudar a criminalização primária, a criminalização secundária e a estigmatização. Através desse novo enfoque, foi possível analisar e avaliar o sistema penal em sua real função. Quebrou-se o mito do “direito igual”, do direito penal que protege igualmente a todos contra as ofensas. Mostrou-se que este não defende a todos, muito menos aos bens essências assim considerados por todos. Tais bens são tidos por essenciais por uma pequena parcela da sociedade, essa mesma parcela que se encontra imune a qualquer tipo de criminalização. Além de tipificar-se como comportamento socialmente danoso somente aquele típico das classes subalternas.

Embora os discursos defendam que o cárcere é um instrumento de ressocialização e reeducação do criminoso, os efeitos da detenção o tornará, na verdade, muito mais propício à reincidência.

E embora seja claro o fracasso da pena de prisão, e isso venha sendo prolatado há muitos anos, vem ele acompanhado de sua manutenção. O que se deve enxergar é que o fracasso da prisão lhe é muito mais útil que sua reforma estrutural, ou até mesmo, que sua abolição. A prisão acaba por transformar a delinqüência em um tipo política e economicamente menos perigoso, até utilizável, sendo possível seu controle e direcionamento para atitudes economicamente interessantes às classes dominantes, como na implantação de redes de prostituição, no tráfico de drogas.

Além disso, a indústria do controle do crime (principalmente nos EUA, onde as prisões são privatizadas) necessita cada vez de matéria-prima. E a disposição da população de pagar pelo que é entendido como segurança não tem limite. A indústria do controle do crime extrai seu lucro, estando plenamente inserida e aceita no mercado capitalista, além de “limpar” a sociedade, removendo aqueles elementos indesejáveis do sistema social. O cárcere produz a própria delinqüência a que se destina exterminar, mantendo-se assim sempre necessário.

A seletividade além de se dar de forma quantitativa (somente alguns serão criminalizados), também se dá de forma qualitativa, privilegiando as condutas comuns às classes baixas, assim como preferencialmente os agentes oriundos destas. A partir do momento que uma pessoa é criminalizada e enviada ao cárcere, suas chances de para lá retornar são ainda maiores do que antes de sua criminalização. Etiquetas negativas e estereótipos acabam consolidando uma carreira criminosa. O indivíduo marcado pelo cárcere será sempre alvo de seleção em posteriores seleções.

Um sistema penal que valoriza os antecedentes e a reincidência criminal acaba por diferenciar o indivíduo criminalizado dos demais membros da sociedade, produzindo não somente estigmas, mas estereótipos criminais, que servirão para delimitar o grupo de pessoas que deverá ser priorizado na seleção realizada pelas agências do sistema penal.

Essa marca estigmática influenciará todo o processo penal, desde a investigação criminal, formação da opinião do Ministério Público, até o convencimento do magistrado, continuando na execução da pena, quanto aos benefícios de que fará jus ou não. Esses estigmas serão carregados pelo condenado por toda sua vida, mesmo após sua saída do cárcere, ainda que se possa dizer que o mesmo tenha sido “ressocializado”. A desconfiança retornará sempre que um crime em torno de si venha a ocorrer, sendo o primeiro a ser alvo de suspeitas.

Essa culpabilidade de autor, em que o indivíduo é punibilizado pelo que é, pelo que pensa, fere diretamente o direito à intimidade e à vida privada, previstos no art. 5° da CF. Além desses preceitos, a reincidência fere o princípio da igualdade, pois cria pessoas de primeira e de segunda categoria. O próprio cárcere obriga o criminoso a tornar-se reincidente, já que quando selecionado pelo sistema penal suas chances de mudar de vida são zeradas. Seu direito à igualdade já foi violado desde o momento em que ocorreu a sua seleção, em detrimento de inúmeros outros crimes que ocorrem cotidianamente, mas não são alvo de punibilização.

Os princípios non bis in idem e da coisa julgada, também são flagrantemente feridos, pois se aplica nova pena por um crime já cometido, julgado e condenado, sob o simples argumento de que a primeira pena não fora suficiente para a readaptação do delinqüente. Porém, depois que o sistema penal fora desmascarado, e sua real função trazida á tona, não há mais como se aceitar argumentos dessa monta.

A reincidência, portanto, deve ser totalmente abolida do ordenamento jurídico brasileiro. A Constituição da República, instituindo um Estado Democrático de Direito, não mais permite que se mantenha em vigor. Punir mais gravemente alguém por reincidir, é punir duas vezes: primeiro porque, dentre tantas condutas e pessoas a praticar delitos, foi esta a escolhida; segundo porque se agrava uma segunda pena por um delito cuja pena já fora cumprida.

De outro lado, imprescindível seria a inserção da co-culpabilidade de forma clara no Código Penal, conceito esse trazido por Jean Paul Marat. A co-culpabilidade decorre diretamente da culpabilidade de fato, já que obriga o reconhecimento de que as condições sociais desfavoráveis diminuem as possibilidades de alguém se pautar dentro das normas.

Com a co-culpabilidade preza-se pelo princípio da igualdade (tratar-se igualmente os iguais e desigualmente os desiguais), já que o homem não é livre em abstrato, mas somente em concreto, sendo livre dentro de um espaço ou de uma possibilidade que concretamente lhe ofereceu a sociedade. Por isso, os fatores sociais devem ser significativamente considerados quando da individualização da pena, sendo a reincidência, em determinados casos, considerada uma atenuante, já que demonstra que o sistema penal agiu sobre o indivíduo, em detrimento de outros tantos criminosos, ceifando todas as suas chances de uma vida digna, obrigando-o à inserir-se em uma carreira criminosa.

Somente como exercício, abra um Código Penal ou a Lei de Contravenções Penais e enumere quantos dos crimes (e contravenções) lá contidos você já praticou, mas nunca foi sequer indiciado. Se quiser ampliar esse exercício, procure também no Código de Trânsito e na Lei de Crimes Ambientais. Depois disso você terá entendido a simples matemática da seletividade penal.

PS: O título deste post é um trecho da música Se liga Doutor, do Bezerra da Silva.